Podiam
também chamar-lhe o caminho do sofrimento, o caminho da desgraça ou
mesmo o caminho das almas perdidas.
Percorri
de bicicleta há uns dias com um amigo, este recente inaugurado
caminho e tendo já feito anteriormente dois percursos espanhóis,
fiquei simplesmente decepcionado e indignado.
Resumidamente
vou descrever alguns dos precalços neste trajecto.
Viseu, em frente à Sé |
Tudo
começa na povoação de Farminhão e começa bem. No Centro Social
puseram-nos o primeiro carimbo na credencial do peregrino e lá fomos
felizes e contentes, desde logo bem impressionados com os caminhos
que atravessavam os bem delineados pinhais. Rapidamente as setas nos
levaram ao centro de Viseu, o que nos sugeriu tomar o “mata-bicho”
e ainda tirar umas fotos tendo como o pano de fundo, a Sé.
Lá
continuamos para Norte e após alguns quilómetros começamos a
sentir algo diferente. O enquadramento era o mesmo – pinhais, mas
as subidas e descidas começaram a tornar-se estupidamente penosas,
com um piso detiorado devido às intempéries e com facilidade nos
obrigava a apear. Em determinada altura “desaguamos” na N2 no
K160 antes da povoação de Almargem, por um trilho estreito, cavado
e muito perigoso que quase nem a pé se conseguia andar.
Passada
esta povoação, entramos numa espécie de terra de ninguém.
Quilómetros e quilómetros sem ver uma “alma” nem uma aldeia.
Para além de desolador e perigoso (se acontece algum acidente ou
doença, quem nos acode?) ainda acrescia que o perfil era uma
autêntica montanha russa, penalizada pelo mau estado dos caminhos
pelos motivos já apontados.
E
assim continuamos (ou penamos, como desejarem), até que encontramos
a agradável vila de Mões, onde fomos compensados com uma excelente
e farta refeição.
Já
sabiamos o que nos esperava: a travessia do rio Paiva e a subida para
a imponente serra de Bigorne e Montemuro, com altitudes a rondar os
1000m. Não sabíamos é que o percurso ultrapassava os limites do
racional.
Um belo caminho para deslizar... |
Começou
logo por sairmos de Mões por caminhos de terra, atravessamos a N2,
obrigando-nos a fazer uma subida bastante intensa e depois rodamos
tuda à direita, voltamos a atravessar a N2 e entramos na estrada que
leva a Mões (!). Pela primeira vez começamos a pensar: quem fez
isto deve ter sido com o objectivo principal de gozar e castigar os
peregrinos! Mal sabíamos que a missa ainda ía a metade.
Já
a Norte do Paiva, depois de uma inevitável íngreme subida, passamos
por cima dos túneis da auto-estrada e tudo indicava, como era
evidente, que íamos passar no centro de Castro Daire. Mas não. As
setas indicaram-nos para seguir por baixo das pontes da auto-estrada
e lá fomos nós montanha acima a exclamar “ mas que diabo de
percurso medieval que evitava as localidades principais!”
Apesar
de a subida ser intensa para a serra de Bigorne, beneficiamos com o
piso em alcatrão, sem no entanto o artífice do percurso deixar-nos
de brindar com o seu espírito aventureiro, ao enviar-nos por
carreiros estreitíssimos e umas escadas encaixadas entre muros altos
(ver figura), que devem tornar-se verdadeiras cascatas e escorregas,
caso calhe chover. Ver para crer!
A beleza do rio Paiva |
Ao
alcançarmos o Km 131 da N2 depois da aldeia de Corguinhas, pensei cá
para os meus botões - “o pior já passou”. Nada mais errado.
Quando nos metemos no caminho que levava a Moura Morta – Mezio –
Bigorne, sentimos passar-nos da forma de peregrinos a mártires! Um
caminho onde quase não se conseguia por os pés direitos, de
bicicleta, em terreno plano não se conseguia andar a mais de 10
Km/h!
Aquilo
que fez transbordar o nosso copo de água (o meu companheiro já
tinha sugerido sairmos dali antes), foi quando num desses caminhos,
já por si mau, as setas apontavam para um desvio onde se via uma
cascata de rochas que tínhamos que ultrapassar. A partir daí
rumamos para a estrada e amaldiçoamos o autor de tamanha
incompetência e falta de bom senso.
Rumamos
para estrada fartos de tanto esforço inútil, mas quando começamos
a descer pela N2, vejo no meu GPS que afinal o percurso também era
pela mesma estrada! Boa!
Já
se fazia tarde e por isso decidimos não fazer caso dos desvaneios e
estupidez do planeador. Rapidamente nos pusemos na Régua, onde
pernoitamos.
No
dia seguinte resolvemos dar uma nova oportunidade ao percurso, o qual
rumou pela N1304 até entrar na N2, mas rapidamente nos apercebemos
que a estupidez continuava em alta, ao enviar por variantes com
descidas abruptas e subidas impossíveis, regressando depois à N2.
Um verdadeiro suplício.
Bonito, mas pouco próprio |
Passado
Vila Real, continuava a montanha russa e as variantes castigadoras. A
partir de Vila Pouca de Aguiar, deixamos de ligar ao percurso
indicado e vimos uma agradável infra-estrutura que atravessa este
concelho – a ciclovia, implantada na antiga linha ferroviária. Boa
ideia! Pensamos nós, vamos por lá! Nó fomos, mas no GPS, via que o
caminho de Santigo era bem mais tortuoso, paralelo à ciclovia.
Depois de Vila Pouca, num determinado ponto indicava um desvio ao
próprio percurso, obrigando mais uma vez a sair do buraco onde
estávamos para subir para a estrada nacional. Porquê? Só Deus
saberá!. Depois de Sabroso de Aguiar, na descida para Oura, o
caminho é um verdadeiro suplício.
A beleza dos vinhedos da região demarcada do Douro |
Já
no concelho de Chaves, a coisa não melhorou. Em Valverde (Vidago) as
setas não deixavam dúvidas. É mesmo para sofrer, e por isso toca a
subir! Neste concelho já não existe a ciclovia com base na linha do
comboio como em Vila Pouca, pois o Presidente limpou da memória uma
das suas promessas eleitorais, mas existem decerto alternativas em
terra muito mais suaves do que aquilo que está indicado. E não me
venham com o antigo traçado medieval, pois os nossos ancestrais não
eram tão burros como nos querem fazer crer, ao ponto de seguirem os
percursos mais difíceis, ainda por cima, evitando as localidades.
Chegados
a Chaves, não tinhamos dúvidas. Este percurso atravessava imensas
paisagens deslumbrantes, mas era completamente intragável e
desaconselhável em termos técnicos. E ainda tem o desplante de
referir na página de internet - http://cpisantiago.com/
, que tem a vantagem do duplo sentido para os peregrinos se dirigirem
a Fátima!. Só não dizem que de Chaves a Viseu são cerca de 192
Km, com 4700m de ascensão acumulada. Uma boa tareia!
O desvio ao percurso |
Segundo
a página atrás indicada, o caminho do interior foi um projecto
conjunto dos municípios que o atravessa, cuja equipa de planeamento
foi composta por funcionários dessas câmaras. E com isto está
explicado o resultado final.
Um
projecto que é, ou devia ser de elevado interesse nacional,
põe assim em cheque uma valiosa possibilidade de desenvolvimento de
uma extensa região do interior norte, por ser tratado com a “prata
da casa” de uma forma quase irresponsável. Digo isto, porque
considero que mataram este projecto à nasceça. Um peregrino que o
faça, nunca mais há-de voltar e enquanto não se esquecer, vai
espalhar à sua volta todo o seu desagrado e revolta. E é isto mesmo
que eu estou aqui a fazer.
Nota-se
que aqueles que delinearam e implantaram o trajecto pouco ou nada
andam a pé e/ou de BTT. Provavelmente nunca fizeram um dos percursos
dos caminhos de Santiago, e têm manifesta falta de idoniedade e de
bom senso. Provavelmente nem sequer foram orientados sobre os
objectivos a alcançar.
Os caminhos de Santiago
não precisam de apresentação. São amplamente conhecidos em todo o
mundo e só temos que aproveitar o seu bom nome para promover o
turismo no nosso país. Por isso devemos na sua elaboração, ter em
consideração os seguintes itens, por ordem decrescente de
importância:
- Orientar o trajecto tendo em conta o potencial económico que pode trazer o turismo da peregrinação para as regiões/localidades por onde passa, pelo que, deve passar pelas principais localidades, em especial aquelas que têm assinalável valor histórico, assim como possibilidades de fornecer alojamento e alimentação;
- Instigar e orientar os proprietários das infraestruturas locais (restaurantes, cafés, alojamentos, museus, etc.), sobre aquilo que podem fazer no sentido de captar o turismo da peregrinação;
- A segurança deve estar sempre presente, evitando traçados por regiões isoladas e em todo caso deve garantir-se que existe rede de telemóvel. Evitar locais que não permitam a acessibilidade em caso de resgate por doença/acidente, assim como áreas susceptíveis a intempéries ou desmoronamentos em caso de mudança súbita do tempo como é o caso de travessia de ribeiras e grandes taludes. Sempre que no traçado haja transito automóvel, deve existir sinalização que alerte os condutores sobre a presença de peregrinos e se possível, reserva uma via só para estes. Em cruzamentos de caminhos com vias principais de grande movimento automóvel, devem sinalizar aos peregrinos a sua aproximação.
- O trajecto deve ser agradável no seu traçado, facilitando o deslocamento a pé ou de bicicleta. Nesses termos, deve ser o mais direto possível para o destino, evitando grandes declives, e caso seja inevitável contorná-los, os mesmos deve ser devidamente apropriados e mantidos. Os caminhos devem ser na sua generalidade com bom piso. Caso isso não se possa garantir, devem como alternativa (nem que seja provisória), ser por estrada.
- Utilizar os antigos caminhos medievais, sem prejuízo dos pontos anteriores.
Ainda
estamos a tempo para corrigir o mal feito. Estamos sempre a tempo,
mas quanto mais tarde isso acontecer mais se espalha a má fama. Por
isso os municípios devem rever todo o projecto, lançar novas
orientações, nomeando para o efeito uma equipa credenciada na
matéria para que altere o trajecto para a forma que faça juz ao bom
nome dos caminhos de Santiago.
Bo
caminho!