sábado, 8 de setembro de 2012

CAMINHO PORTUGUÊS INTERIOR DE SANTIAGO - Morte à nascença


Podiam também chamar-lhe o caminho do sofrimento, o caminho da desgraça ou mesmo o caminho das almas perdidas.
Percorri de bicicleta há uns dias com um amigo, este recente inaugurado caminho e tendo já feito anteriormente dois percursos espanhóis, fiquei simplesmente decepcionado e indignado.
Resumidamente vou descrever alguns dos precalços neste trajecto.
Viseu, em frente à Sé
Tudo começa na povoação de Farminhão e começa bem. No Centro Social puseram-nos o primeiro carimbo na credencial do peregrino e lá fomos felizes e contentes, desde logo bem impressionados com os caminhos que atravessavam os bem delineados pinhais. Rapidamente as setas nos levaram ao centro de Viseu, o que nos sugeriu tomar o “mata-bicho” e ainda tirar umas fotos tendo como o pano de fundo, a Sé.
Lá continuamos para Norte e após alguns quilómetros começamos a sentir algo diferente. O enquadramento era o mesmo – pinhais, mas as subidas e descidas começaram a tornar-se estupidamente penosas, com um piso detiorado devido às intempéries e com facilidade nos obrigava a apear. Em determinada altura “desaguamos” na N2 no K160 antes da povoação de Almargem, por um trilho estreito, cavado e muito perigoso que quase nem a pé se conseguia andar.
Passada esta povoação, entramos numa espécie de terra de ninguém. Quilómetros e quilómetros sem ver uma “alma” nem uma aldeia. Para além de desolador e perigoso (se acontece algum acidente ou doença, quem nos acode?) ainda acrescia que o perfil era uma autêntica montanha russa, penalizada pelo mau estado dos caminhos pelos motivos já apontados.
E assim continuamos (ou penamos, como desejarem), até que encontramos a agradável vila de Mões, onde fomos compensados com uma excelente e farta refeição.
Já sabiamos o que nos esperava: a travessia do rio Paiva e a subida para a imponente serra de Bigorne e Montemuro, com altitudes a rondar os 1000m. Não sabíamos é que o percurso ultrapassava os limites do racional.
Um belo caminho para deslizar...
Começou logo por sairmos de Mões por caminhos de terra, atravessamos a N2, obrigando-nos a fazer uma subida bastante intensa e depois rodamos tuda à direita, voltamos a atravessar a N2 e entramos na estrada que leva a Mões (!). Pela primeira vez começamos a pensar: quem fez isto deve ter sido com o objectivo principal de gozar e castigar os peregrinos! Mal sabíamos que a missa ainda ía a metade.
Já a Norte do Paiva, depois de uma inevitável íngreme subida, passamos por cima dos túneis da auto-estrada e tudo indicava, como era evidente, que íamos passar no centro de Castro Daire. Mas não. As setas indicaram-nos para seguir por baixo das pontes da auto-estrada e lá fomos nós montanha acima a exclamar “ mas que diabo de percurso medieval que evitava as localidades principais!”
Apesar de a subida ser intensa para a serra de Bigorne, beneficiamos com o piso em alcatrão, sem no entanto o artífice do percurso deixar-nos de brindar com o seu espírito aventureiro, ao enviar-nos por carreiros estreitíssimos e umas escadas encaixadas entre muros altos (ver figura), que devem tornar-se verdadeiras cascatas e escorregas, caso calhe chover. Ver para crer!
A beleza do rio Paiva
Ao alcançarmos o Km 131 da N2 depois da aldeia de Corguinhas, pensei cá para os meus botões - “o pior já passou”. Nada mais errado. Quando nos metemos no caminho que levava a Moura Morta – Mezio – Bigorne, sentimos passar-nos da forma de peregrinos a mártires! Um caminho onde quase não se conseguia por os pés direitos, de bicicleta, em terreno plano não se conseguia andar a mais de 10 Km/h!
Aquilo que fez transbordar o nosso copo de água (o meu companheiro já tinha sugerido sairmos dali antes), foi quando num desses caminhos, já por si mau, as setas apontavam para um desvio onde se via uma cascata de rochas que tínhamos que ultrapassar. A partir daí rumamos para a estrada e amaldiçoamos o autor de tamanha incompetência e falta de bom senso.
Rumamos para estrada fartos de tanto esforço inútil, mas quando começamos a descer pela N2, vejo no meu GPS que afinal o percurso também era pela mesma estrada! Boa!
Já se fazia tarde e por isso decidimos não fazer caso dos desvaneios e estupidez do planeador. Rapidamente nos pusemos na Régua, onde pernoitamos.
No dia seguinte resolvemos dar uma nova oportunidade ao percurso, o qual rumou pela N1304 até entrar na N2, mas rapidamente nos apercebemos que a estupidez continuava em alta, ao enviar por variantes com descidas abruptas e subidas impossíveis, regressando depois à N2. Um verdadeiro suplício.
Bonito, mas pouco próprio
Passado Vila Real, continuava a montanha russa e as variantes castigadoras. A partir de Vila Pouca de Aguiar, deixamos de ligar ao percurso indicado e vimos uma agradável infra-estrutura que atravessa este concelho – a ciclovia, implantada na antiga linha ferroviária. Boa ideia! Pensamos nós, vamos por lá! Nó fomos, mas no GPS, via que o caminho de Santigo era bem mais tortuoso, paralelo à ciclovia. Depois de Vila Pouca, num determinado ponto indicava um desvio ao próprio percurso, obrigando mais uma vez a sair do buraco onde estávamos para subir para a estrada nacional. Porquê? Só Deus saberá!. Depois de Sabroso de Aguiar, na descida para Oura, o caminho é um verdadeiro suplício.
A beleza dos vinhedos da região demarcada do Douro
Já no concelho de Chaves, a coisa não melhorou. Em Valverde (Vidago) as setas não deixavam dúvidas. É mesmo para sofrer, e por isso toca a subir! Neste concelho já não existe a ciclovia com base na linha do comboio como em Vila Pouca, pois o Presidente limpou da memória uma das suas promessas eleitorais, mas existem decerto alternativas em terra muito mais suaves do que aquilo que está indicado. E não me venham com o antigo traçado medieval, pois os nossos ancestrais não eram tão burros como nos querem fazer crer, ao ponto de seguirem os percursos mais difíceis, ainda por cima, evitando as localidades.
Chegados a Chaves, não tinhamos dúvidas. Este percurso atravessava imensas paisagens deslumbrantes, mas era completamente intragável e desaconselhável em termos técnicos. E ainda tem o desplante de referir na página de internet - http://cpisantiago.com/ , que tem a vantagem do duplo sentido para os peregrinos se dirigirem a Fátima!. Só não dizem que de Chaves a Viseu são cerca de 192 Km, com 4700m de ascensão acumulada. Uma boa tareia!
O desvio ao percurso
Segundo a página atrás indicada, o caminho do interior foi um projecto conjunto dos municípios que o atravessa, cuja equipa de planeamento foi composta por funcionários dessas câmaras. E com isto está explicado o resultado final.
Um projecto que é, ou devia ser de elevado interesse nacional, põe assim em cheque uma valiosa possibilidade de desenvolvimento de uma extensa região do interior norte, por ser tratado com a “prata da casa” de uma forma quase irresponsável. Digo isto, porque considero que mataram este projecto à nasceça. Um peregrino que o faça, nunca mais há-de voltar e enquanto não se esquecer, vai espalhar à sua volta todo o seu desagrado e revolta. E é isto mesmo que eu estou aqui a fazer.
Nota-se que aqueles que delinearam e implantaram o trajecto pouco ou nada andam a pé e/ou de BTT. Provavelmente nunca fizeram um dos percursos dos caminhos de Santiago, e têm manifesta falta de idoniedade e de bom senso. Provavelmente nem sequer foram orientados sobre os objectivos a alcançar.
Os caminhos de Santiago não precisam de apresentação. São amplamente conhecidos em todo o mundo e só temos que aproveitar o seu bom nome para promover o turismo no nosso país. Por isso devemos na sua elaboração, ter em consideração os seguintes itens, por ordem decrescente de importância:
  • Orientar o trajecto tendo em conta o potencial económico que pode trazer o turismo da peregrinação para as regiões/localidades por onde passa, pelo que, deve passar pelas principais localidades, em especial aquelas que têm assinalável valor histórico, assim como possibilidades de fornecer alojamento e alimentação;
  • Instigar e orientar os proprietários das infraestruturas locais (restaurantes, cafés, alojamentos, museus, etc.), sobre aquilo que podem fazer no sentido de captar o turismo da peregrinação;
  • A segurança deve estar sempre presente, evitando traçados por regiões isoladas e em todo caso deve garantir-se que existe rede de telemóvel. Evitar locais que não permitam a acessibilidade em caso de resgate por doença/acidente, assim como áreas susceptíveis a intempéries ou desmoronamentos em caso de mudança súbita do tempo como é o caso de travessia de ribeiras e grandes taludes. Sempre que no traçado haja transito automóvel, deve existir sinalização que alerte os condutores sobre a presença de peregrinos e se possível, reserva uma via só para estes. Em cruzamentos de caminhos com vias principais de grande movimento automóvel, devem sinalizar aos peregrinos a sua aproximação.
  • O trajecto deve ser agradável no seu traçado, facilitando o deslocamento a pé ou de bicicleta. Nesses termos, deve ser o mais direto possível para o destino, evitando grandes declives, e caso seja inevitável contorná-los, os mesmos deve ser devidamente apropriados e mantidos. Os caminhos devem ser na sua generalidade com bom piso. Caso isso não se possa garantir, devem como alternativa (nem que seja provisória), ser por estrada.
  • Utilizar os antigos caminhos medievais, sem prejuízo dos pontos anteriores.
Ainda estamos a tempo para corrigir o mal feito. Estamos sempre a tempo, mas quanto mais tarde isso acontecer mais se espalha a má fama. Por isso os municípios devem rever todo o projecto, lançar novas orientações, nomeando para o efeito uma equipa credenciada na matéria para que altere o trajecto para a forma que faça juz ao bom nome dos caminhos de Santiago.

Bo caminho!